PREFÁCIO

Ausencia de História equivale à ausencia de cultura, disse Bernhart (1). Assim é, de fato; e, com razão, povos sem historia são chamados aqueles que se encontram ainda nos limbos da civilisação primitiva. É pela memoria que se mantêm a continuidade e coesão da personalidade humana; analogamente, é pela Historia que se mantêm a continuidade na vida de um povo; e sem essa continuidade não é possivel o progresso cultural.

A História, no conceito de Cicero, é a mestra da vida; no de Diniz de Halicarnasso, a Filosofia em exemplos; no de Polybio, a melhor escola de educação e cultura.

Entretanto, uma nova orientação há, felizmente não seguida ainda entre nós, segundo a qual é preciso preparar uma geração libertada da preocupação histórica, uma geração "que pense inhistóricamente", pois só assim, dizem, poderá ser creadora e não apenas plagiária; só assim poderá plasmar o futuro em que vae viver, libertando-se do epigonismo que é o resultado do culto ao passado. - É essa a verdade? Não.

- Não é exato que o estudo da Historia seja apenas o culto dos grandes homens e só nos consiga preparar epigonos que venham a ser, em regra, mais nocivos que uteis à humanidade.

Certamente, muita razão assistia ao grande Reitor de Harvard University, Charles Eliot, em admoestar-nos : "Um passado brilhante constitue grave perigo, si nos torna contentes com o presente e mal preparados para o futuro". Não menos certo é, porém, que as glórias do passado podem constituir motivos para que nos esforcemos em não decair delas, assim corno a lembrança das desgraças costuma transformar-se em estimulo para futuro reerguimento.

Em qualquer dos casos, a visão do passado é sempre salutar, porque a Historia tem um sentido e assim, pois, do exame do passado se podem deduzir lições e ensinamentos para o futuro.

Louvores, pois, àqueles que se entregam a essa nobre e patriótica tarefa.

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Entre as várias ciências auxiliares da História, ao lado do estudo das armas e brazões (Heraldica); do conhecimento das moedas e medalhas (Numismatica); do estudo das inscrições (Epigrufia) dos selos (Spragistica). dos documentos (Diplomatica), das viagens, dos arquivos, etc., figura a Genealogia, isto é, o estudo da origem, propagação e parentesco das familias. E é por aí que começa a História.

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(1) Sinn der Geschichte.

Na sua monumental História Universal (2) assinala Weiss os varios graus da evolução por que passa a História no seu conceito e na sua composição, distinguindo, entre o conceito da simples Genealogia e o da Historia, como a compreendemos hoje, tres outros: o cronistico. o analistico e o pragmatico.

Como base inicial tem-se o estudo das familias, é a primeira forma, é o quadro inicial em que se vão articulando os acontecimentos. A Cronica e os Anais assinalam dia a dia, ano a ano, os fátos dignos de nota. Nos Anais tem-se, simplesmente, dos acontecimentos, o que: as festas nacionaes ou populares, os vencedores nos jogos, e ainda os fenomenos naturais, como eclipses; etc. Dos Anais procede a Cronica; nesta, pesquiza-se tambem o como, não porém o porque e o para que. A Cronica e os Anais atendem mais aos fátos que às pessoas.

A Cronica das familias marca a passagem para as Memorias. A Memoria evolue para o modo pragmatico da História. O pragmatismo não se reduz à simples exposição dos acontecimentos, indaga-lhes tambem as causas e as correlações.

Temos finalmente o modo orgânico de conceber e escrever História: A humanidade é um agregado de individuos, não mecanicamente justapostos mas organicarnente combinados, formando no seu conjunto como um ser, como uma vida organica a cujas relações e funções se condicionam, se ajustam e se completam. A História será de certo modo a biografia desse ser Só esse conceito orgânico nos pode dar uma imagem fiel da realidade e corresponder à verdadeira unidade do genero humano. E só dessa maneira pode a História tomar caracter cientifico. Estudam-se as causas dos acontecimentos, as suas correlações, as suas consequencias. o que, o como, o porque, e o para que, verificando como se deram os acontecimentos, porque se passaram assim as cousas e quais as consequências.

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A primeira fase reduz-se, pois, a genealogias. Os Egipcios, que se gabavam de ser o povo mais antigo do mundo, começaram a sua História sobre a base das genealogias. As Enneadas heliopolitanas formaram o quadro das dinastias divinas, de que procederam por uma transição facil, no tempo de Menes, as dinastias humanas.

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(2) Weltgeschichte.

Cousa semelhante se deu em Babilonia: Tomavam a historia particular da cidade para enquadrar nela a historia de todo o país, e as familias principescas, de origens várias, que se tinham sucedido no trono, para formarem o canon dos reis da Caldéa(3). Familias e dinastias, divinas e humanas: tal foi, em suma, o assunto desses primeiros quadros históricos.

E esse não é apenas o plano natural e intuitivo para os primeiros tempos do homem na terra, para a aurora dos tempos históricos; mas, um programa adequado, para qualquer época e qualquer logar, especialmente no caso de paises novos, como o nosso, em que está ainda em formação o conceito organico de História..

É facil compreender quanto podem para o conhecimento do conjunto esses estudos mesmo colhidos em recinto restrito, aparentemente fragmentarios e desarticulados. E há certas conexões históricas, certas relações causais que só por esse meio se podem esclarecer ou mesmo descobrir. Para comprovar ou corroborar o meu asserto poderia citar, só entre nós, muitissimos exemplos. Limitar-me-ei a um apenas, referente ao capitulo mais interessante da História Colonial mineira - a Inconfidência.

Em 1925,. graças ao obsequio de um amigo, antigo colega meu no Seminário de Mariana, Sr. Samuel Soares de Almeida, pude, estando em São João d'El Rey, ler os assentamentos paroquiais relativos á familia de Tiradentes, de que fiz a publicação em meu livro — Inconfidencia Mineira (pags. 119-121). Embora reduzida apenas aos pais e irmãos de Tiradentes essa genealogia esclarece varios pontos da Inconfidencia, como os dous importantes depoimentos do Inconfidente Salvador Carvalho do Amaral Gurgel, a 12 e a 30 de Junho de 1789, em Vila Rica, relativamente ao episodio de um dicionário francês que o mesmo depoente quizera obter de Tiradentes por compra ou por emprestimo, depreendendo-se, ora que fora vendido por Tiradentes "a um seu irmão”, ora que estava emprestado com "o Pe. Francisco que tem uma botica na Ponte do Rosario”, dicionário que afinal, Salvador Gurgel obteve emprestado por quinze dias. Dessa genealogia, graças ao conhecimento da naturalidade dos pais e avós de Tiradentes, e à posição social do pai e dos irmãos do mesmo se podem deduzir como, fiz no citado livro, varias "conclusões" sobre o herói ; que não serão apenas meras conjecturas, menos ainda presunções arbitrárias, mas constituem informações históricas que só podem ser destruidas mediante provas positivas em contrário, e que, entretanto, vieram desfazer algumas versões erroneas ou pelo menos infundadas, que corriam sobre a matéria.

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(3) Mas pero - Histoire ancienne des peup les de L´Orient classique 1.

Louvores, pois, ao autor do presente trabalho - Genealogias da Zona do Carmo.

Não se trata de um estreiante em História, pois já conquistou brilhantemente as esporas com a publicação da Arquidiocese de Mariana - Subsidios para sua Historia. (3 volumes, São Paulo, Escolas Profissionaes do Lyceu Coração de Jesus, 1928). O titulo dessa obra é modesto, mas grande a valia, pela paciencia e minucia das investigações na consulta de abundante material documentario, pela segurança e elevação da critica, pela serenidade no julgamento e, sobretudo, pelo amor à verdade, essa verdade que deve ser encarada de frente, que não deve ser negada nem mesmo desfigurada ou difarçada, e que é a libertadora do espirito - Et veritas liberabit vos (4).

O novo trabalho confirma a reputação feliz já adquirida pelo aut0or, e traz variados e seguros subsidios para a nossa Historia, desbravando o caminho e coordenando elementos, - isto é, lançando na fase dificil, na fase inicial da obtenção e elaboração do material histórico, as bases para futuras construções. Acresce que o trabalho do Conego Trindade não se reduz a genealogias secas, apenas ricas em nomes de pessoas; pois, são acompanhadas de muitas certidões, escrituras, testamentos, resumos biograficos, multiplos subsidios e contribuições enfim, de que se beneficiarão os que se propuzerem mais tarde a escrever a nossa Historia, da qual muito há ainda a expor e esclarecer.

Embora mais amador que oficial, considero-me do mesmo oficio e posso não só avaliar os esforços e fadigas a que não se poupou o autor para escrever o seu livro, como apreciar e assinalar o merito que ele alcançou, sentindo-me feliz em pôr o meu nome nesta simples apresentação.

Lucio José dos Santos

Belo Horizonte, 20 de Janeiro de 1943.

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(4) Joan VIII-32.

 

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