FOI HÁ MUITOS anos. Andaria eu pelos doze ou treze do meu nascimento. Viajávamos, meu Avô materno e eu, de Barra Longa para Rio Doce, quando ao romper certa curva, nas proximidades da antiga fazenda do Bueno, Feriu-me de improviso um raio rebrilhante, frechado de baixo, de uma das margens do rio Carmo.
O histórico ribeirão, ao fundo, no vale distante, rolava soluçante; ia a gemer, quem sabe, saudades dolorosas de seus dias de esplendor, de seus enamorados mortos, “daquelas cousas grandes que acabaram”...
O dia - não me Lembra a quadra do ano — era um dia glorioso, alumiado pelos fulgores de um sol que ardia triunfante nas alturas, sobredoirando as coisas e emprestando ao cristal em montes pela praia o raio que me ofuscara.
Não se me apagou mais da memória a paisagem que do Alto do Cabeça Sêca, áquela hora, se desdobrara aos meus olhos de doze anos. A imaginação infantil teria posto no panorama cores e majestade porventura exageradas; mas estou a vê-las, com a mesma impressão de outrora, as gupiaras abandonadas, os taludes abertos em rasgões tenebrosos, as terras, derredor, gananciosamente raspadas pelo mineiro primitivo.
A certa curiosidade, menos refreavel,satisfez-me o Avô, bastante versado nas cronicas de sua velha e estremecida Barra Longa: haviam-me impressionado, mais que tudo, os cascalhos amontoados que, lá, abaixo, reverberavam lavadinhos, cintilantes, a luz do sol sem nuvens daquele dia.
— "Foram os antigos..."— E à palavra "antigos", senti animarem-se aos meus olhos certas gravuras de velhos livros, desprenderem-se de suas páginas, descerem a povoar as margens silenciosas do ribeirão. De súbito movimentou se o deserto, multidão imensa de feitio estranho, excitada pela fome maldita do ouro.... Mas o Avô prosseguia —"Aquela risca, além, no morro , que nos está parecendo uma estrada, é um antigo rêgo de oito leguas. Traçou-o e abriu-o, para lavrar todas estas encostas, desde Corvinas até Santana do Deserto, o mestre-de-campo Matias Barbosa da Silva."
E falou-me desse lusitano audaz e distinto, primeiro homem civilizado que, rompendo florestas milenárias e assenhoreando-se de todas aquelas terras, ali se fizera "o mais abastado vassalo da capitania."
Contou-me da fazenda dos Fidalgos; discorreu acerca desses antigos; citou nomes; recordou lendas memorou histórias pitorescas.
Transitávamos agora por defronte do Bueno e, apontando-me o casarão velhissimo, revelou-me que ali vivera, senhor de vultosos haveres, dono das lavras, opulentas outrora, deante das quais pasmara eu, havia pouco, Caetano de Oliveira, trisavô de meu Pai. Ouvi então o caso de uns pleitos memoraveis entre o velho mineiro, meu ascendente, e Antônio Alves Torres aliado a João Francisco Pimenta.
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Foi sem dúvida esse bom e saudoso Avô quem me herdou o ardente amor do passado de minha terra natal.
Da lição que esse dia lhe ouvi ficou-me a obsedante preocupação de conhecer bem esses antigos, de levantar do esquecimento os primeiros povoadores da região em que nasci.
Em sua quasi totalidade ai estão êles - seus nomes pelo menos — nas páginas que se seguem.
E ai está como nasceram estas genealogias. Tarde me liberto da preocupação de pô-las por escrito e divulgá-las(*). É que só muito recentemente logrei afinal coligir a documentação sem a qual impossível me fora realizar o projeto longo tempo acalentado.
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(*) Delas publiquei, há alguns anos, pequeno ensaio, feito das limitadas informações que pude colher no ambito restrito da freguesia que eu paroquiava.
Contudo, nada mais são as Genealogias da Zona do Carmo que nomes e datas, colhidas aqui e ali, de memórias e de arquivos, ao tempo em que ia eu saciando essa curiosidade que me nasceu na infância.
Das menos nobres não é, como poderá parecer, a ocupação de organizar genealogias.
Moisés no Gênesis nos Números; Esdras nos Paralipômenos, levantaram genealogias várias. O seu Evangelho, abre-o solenemente São Mateus com a árvore genealógica de Nosso Senhor Jesus Christo. São Lucas, a seu turno, ocupa-se no seu dos ancestrais do Divino Salvador(*).
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(*) Geni. caps. V, X, XXII, XXV e XXXVI; Num. III e XXVI; 1º Paralip. 1 — e segs.; S.Math. I; S.Luc. III.
Eclesiásticos distintos, entre nós e em Portugal (para me referir somente aos que escreveram no idioma português), empregaram-se em estudos genealógicos.
De trabalhos tais legou-nos Dom Antonio Caetano de Sousa dezoito volumes, com a historia da familia real e de todas as grandes casas portuguesas.
Transmitiu-nos o piedoso jesuita Padre Antonio Cordeiro, nos dous volumes da Historia Insulana, a descendência dos que, primeiro, desbravaram e povoaram o arquipélago dos Açores.
Jaboatão — Frei Antonio de Santa Maria Jaboatão — deixou-nos o Catálogo Genealógico e, nele, as origens de todas as grandes familias do norte brasileiro.
Pouco mais de cinco anos há, tirou a lume o jesuita português Luis Moreira de Sá e Costa a Descendência dos Primeiros Marqueses de Pombal, opulentissimo trabalho, em cujas páginas desfilam num cortejo magnifico, que faz pensar na vingança de Deus os netos do truculento Marquês, á frente dos quais se destaca, suave e bondoso, o bispo de Mariana Dom Antonio Maria Correa de Sá e Benevides, acolitado por monsenhores da patriarcal, priores de colegiadas, jesuitas, franciscanos, lazaristas, carmelitas, padres e freiras de várias familias religiosas, todos êles "frutos delicados" da mesma "arvore sombria".(*)
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(*) Eugênio de Castro remata o excelente prefácio que deu à Descendencia com estas palavras: "Como duma árvore tão sombria nasceram frutos tão delicados? E, á falta de resposta que me satisfaça, acabo por exclamar, como exclamaria um francês: c' est la vengeance de Dieu!"
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Não dá, portanto, o autor destas genealogias por mal consumidas as horas, roubadas a um justo recreio, que empregou na decifração de pulverulentos e carcomidos códices, donde brotou a parte, acaso, menos desinteressante das Genealogias da Zona do Carmo.
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Aos progênitos da estirpe boa e honrosa que descobriu e povôou a zona do ribeirão do Carmo, entrego o destino de meu livro. Em suas Páginas encontrarão somente motivos de justo desvanecimento. Estou que o hão de perlustrar contentes de seus antepassados.
Mariana, 19 de maio de 1943.
Cônego R. Trindade